Tuesday, April 12, 2005

Um filme no limbo das emoções

A vida não é um sonho
(Requiem for a dream)
Realização: Darren Aronofsky
Interpretação: Ellen Burstyn, Jared Leto, Jennifer Connelly
EUA, 2000

Darren Aronofsky provocou sensação em Holywood ao colocar um filme, totalmente independente e de linguagem fora dos requisitos mais convencionais, na senda dos Oscares de 2000 através da nomeação da magnífica prestação da actriz Ellen Burstyn. Houve quem viesse a terreiro afirmar que era a própria Ellen Burstyn, uma actriz prestigiada e respeitada há muito tempo no meio feroz de Holywood (sobretudo desde que ganhara o Oscar em 1974 com Alice Já Não Mora Aqui), quem tinha literalmente empurrado o filme e o seu jovem realizador para este patamar. Mas na verdade, um olhar atento e audaz verifica que não. O filme tem a marca indelével do seu autor. Num certo sentido, como a própria crítica da especialidade acabaria por reconhecer, a própria Ellen Burstyn acabaria por sucumbir ao instinto forte e violento da lente de Aronovsky, atirando-a para uma representação nos limites das suas próprias forças performativas. Talvez por isso, receberia o selo do American Film Institute como um dos 10 do ano.

No entanto, o reconhecimento público não seria assim tão pacífico. Uma boa parte dos media criticaria ferozmente o filme. A CNN, esse gigante global da informação televisiva, chega mesmo a recomendar o não visionamento do filme justificando que o jovem realizador se tinha emaranhado em clichés retóricos sobre a dependência e sobretudo tinha-se deixado levar pelo exagero melodramático e deslumbramento do poder das imagens que ele próprio criara. Não será de estranhar que este Requiem tenha uma melodia visual e conceptual dissonante em relação aos meios situacionistas da sociedade americana. A película transporta consigo uma análise amarga sobre os efeitos nefastos dos media na mente humana, em especial a televisão, no cumprimento de um dos maiores sonhos americanos: a fama (traço evidente na composição da personagem interpretada por Burstyn). Aronofsky tinha conseguido manter-se independente e esse facto já era uma conquista importante.

Torna-se lógico que uma boa parte do peso da polémica sobre o filme reside no próprio tema da dependência. Há quem diga: queres ser polémico? É fácil! Faz uma obra sobre a dependência da droga. Um dos grandes tabus, desde sempre, da América. Mas o filme não se resume a isso. É verdade que tem como base a obra de Hubert Selby Jr, um dos grandes gurus da literatura junkie americana actual, na linha de outros grandes nomes de sempre do género cujas vidas e obras deram no passado momentos cinematográficos significativos: t.c. na ficção científica de Philip K. Dick (Blade Runner e Minoraty Report), no mundo surreal de Hunter S. Thompson (Fear and Loathing in Las Vegas), na perspectiva neo-realista e amargurada de Jim Carrol (Basketball Diaries), isto já para não falar do mais emblemático de todos, o hiper-realista William Burroughs (Drugstore Cowboy e Naked Lunch). É verdade também que o próprio Selby Jr assumiria a escrita do argumento com Aronofsky, acompanhando par e passo o filme e até participando como actor numa pequena cena final (ele é um dos guardas da prisão). No entanto, neste filme verifica-se um profundo cunho pessoal detectável na intensa malha visual e impressionista que o olho clínico de Aronofsky aplica ao filme. A composição dos personagens é muito forte através da explanação dos diálogos de Selby Jr mas que somente ganha força com o enquadramento brilhante de Aronofsky. Aqui convém realçar que não sobressai somente Burstyn, contamos igualmente com os desempenhos seguros de Jared Leto, Jennifer Conely e Marlon Wayans. Aronofsky provava agora, com mais meios é certo, que o reconhecimento artístico do seu primeiro trabalho (Pi), que lhe valera o prémio de Sundance em 1998, não tinha sido em vão. A estética do filme, cuja fotografia de Matthew J. Labique seria premiada, é reconhecidamente influenciada, em momentos pontuais, na de Laranja Mecânica de Kubrick mas esta constatação não será mais do que um sentido tributo de um jovem artista a uma estética visual que começa a ganhar seguidores nos realizadores americanos (uma via que se iniciou através do decano Oliver Stone em Assassinos Natos e que tem como um dos mais recentes exemplos Spun de Akerlund, 2003). É sabido, que este filme é tudo menos concensual. Uma obra que se encerra nas teias da sua própria ambivalência estética e conceptual. Um filme, tal como os seus personagens, no limbo das emoções.

Uma nota sobre Darren Aronofsky
A Vida Não é Um Sonho, trata-se do segundo filme de um dos mais promissores realizadores norte-americanos: Darren Aronofsky. A sua estreia nas longas metragens deu-se com Pi em 1998 valendo-lhe na altura o mais prestigiado prémio do cinema independente americano, o Sundance Festival Award. Pi seria então filmado somente com 60 000 dólares emprestados à família e amigos. Aronofsky gosta de se designar a ele próprio como “ a Brooklyn hip-hop kid”, um puto de rua, marcado pela herança familiar judaica, e cujo passatempo favorito era dividir o seu tempo entre a pintura de graffitis nas estações do metro de Nova-York e as filmagens na Times Square. Mais tarde aluno de Harvard, receberia o reconhecimento internacional com a sua tese final sobre cinema, ganhando mesmo uma bolsa do American Film Institute. Provando-se que dificilmente um realizador na América, por muito independente que seja, se consegue manter fora dos grandes cenários, Aronofsky esteve (ou estará) envolvido recentemente em dois mega projectos holywoodescos como realizador e produtor: em Ronin, a adaptação de uma história da banda-desenhada de Frank Miller (com Robert de Niro à cabeça) e em Batman Day One, um dos mais aguardados blockbusters que tem já a participação confirmada de Eminem e que só recentemente encontraria Christian Bale para a interpretação de Bruce Wayne. Os dois projectos estão encalhados com problemas de produção e não se confirma a sua manutenção em ambos. Pelo meio, aguarda-se a estreia para este ano do seu próximo filme The Fountain com dois dos seus actores favoritos, Ellen Burstyn e Sean Guillete, mas que terá Hugh Jackman e Rachel Weisz nos principais papeis. Um filme de ficção-científica cujo tratamento cinematográfico se prevê mais consentâneo com aquilo que foram as suas duas primeiras obras.

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